terça-feira, 18 de agosto de 2009

A RAZÃO DAS ARMAS

Gregorio Baremblitt
Dentro do conhecido processo de incremento da criminalidade no Brasil nos últimos vinte anos, se destaca o homicídio com armas de fogo.
No primeiro semestre do ano dois mil, uma série de notícias de jornais e estatísticas de órgãos competentes se somaram ao alarme que a população tem registrado da sua própria experiência cotidiana. Desde essa época ate agora a venda de armas só tem aumentado e nas diversas pesquisas a população tem se manifestado predominantemente a favor da posse de armas. Como é sabido os EUA são os maiores fabricantes e exportadores mundiais de armas de todo tipo,
Não cabe na modalidade apenas informativa de este escrito apresentar numericamente estas ocorrências, só recordaremos alguns dados significativos deste panorama.
Ultimamente (2008) se tem registrado:
· O elevadíssimo número de assassinatos por armas de fogo nas grandes cidades do Brasil, que é o terceiro do mundo, depois da Colômbia e da Guatemala.
· A polícia de São Paulo e do Rio de Janeiro são as que mais matam no mundo, e boa parte desses homicídios resultam de disparos nas costas e na nuca das vítimas, o que tem sido interpretado como execuções por técnicos na matéria.
· As máfias do narcotráfico, responsáveis por assaltos a bancos, a transportes, a carros, a grandes depósitos de empresas industriais e comerciais, assim como seqüestros (todos estes delitos acompanhados de grande quantidade de assassinatos), estão equipadas com armamento pesado mais moderno e poderoso do que o da polícia e das forças armadas.
· O crescimento de todo tipo de criminalidade tem criado um verdadeiro exército urbano de segurança privada, desde logo fortemente armado, e devidamente oficializado, em um número próximo a meio milhão de agentes, o que é superior aos dos agentes de setores correspondentes nas forças armadas regulares.
· Do mesmo modo, tem proliferado a indústria de blindados de automóveis e um tipo de edificação urbana de condomínios fechados, fortificados e fortemente vigiados, que tendem a pronunciar o contraste entre os bairros extremamente miseráveis e os ricos, convertendo o espaço público em “terra de ninguém”, ou verdadeiro “campo de batalha”.
· Os conflitos que se desenvolvem em torno das reivindicações da propriedade rural têm propiciado um armamento efetivo, embora que desigual, de todos os segmentos em luta. O mesmo acontece com as comunidades indígenas, abandonadas por o poder estatal e invadidas por todas classe de predadores.
· O Brasil é um produtor industrial importante de armas de fogo, parte das quais se vende no país e parte se exporta a diversos mercados mundiais.
· O número de armas vendidas legalmente com seus respectivos registros de propriedade e/ou de porte é muito reduzido com respeito ao que se calcula que estão em uso na praça.
· Os homicídios registrados em brigas pessoais sem motivação delinqüêncial ostensiva, também são em número elevado e, geralmente, estão vinculados ao excessivo uso de álcool; sendo que o Brasil é um dos maiores produtores mundial de bebidas alcóolicas, algumas delas de custo proporcionalmente barato com relação a outros produtos de consumo alimentar.
· Existem suspeitas de que a quantidade de homicídios relacionados a causas políticas é elevada, porém, de pouca difusão nos meios de comunicação.
· Existem fundadas suspeitas de que as forças policiais estão freqüentemente envolvidas em execuções de fato e na cumplicidade com o crime organizado, assim como com os procedimentos delinqüenciais de suborno do sistema carcerário e judiciário, a facilitação de fugas de presos que, amiúde, são acompanhadas de mortes por armas de fogo.
· Avalia-se que, boa parte das armas de fogo usadas pelos assassinos, resultam da venda ilegal das mesmas, provenientes dos arsenais policiais e militares, assim como do roubo (por furto ou assalto) das mesmas, de seus proprietários civis legítimos e, finalmente, do tráfico internacional de armas.
· Constata-se que, uma proporção importante de uso de armas de fogo em homicídios acidentais, culposos ou criminosos, é efetuada por menores de idade, envolvidos com o crime organizado.
Temos tido a oportunidade de assistir, pouco tempo atrás, a debates na Câmara de Deputados e no do Senado, em torno do processo de regulamentação, da fabricação, venda, compra, propriedade e porte de armas de fogo, preliminar à sua passagem às instâncias superiores, para sua definitiva promulgação como lei.
Uma das principais medidas aprovadas em primeira instância consiste na devolução obrigatória, às autoridades correspondentes, das armas de fogo em posse de seus proprietários e/ou portadores legítimos, que possuem os documentos que autorizam esse direito.
Tem se mencionado, também, a possibilidade de proibir, muito seletivamente, a venda interna e de favorecer, com diversas medidas tributárias e alfandegárias, a exportação de armas de fogo.
Igualmente, se sugere a possibilidade de unificação das polícias federal, estadual e militar, em abrir e legalizar o recrutamento de uma espécie de “serviço policial-militar profissionalizado - voluntário, destinado à manutenção da ordem nacional interna, dado que as relações internacionais fronteiriças do país não parecem oferecer risco algum. Enquanto que, na importação de armamentos, a mesma seria ativada e destinada exclusivamente ao melhor equipamento das corporações repressivas, incluindo uma modernização das viaturas, comunicações, etc.
Não faltou a idéia de uma convocação dos setores de reservistas das respectivas repartições militares, a vigilância e proibição do “duplo emprego” dos agentes regulares das organizações de seguridade privada, uma maior inversão no adestramento dos mencionados quadros, etc.
Afinal, ainda que polemicamente, temos ouvido a fala de diversos candidatos a cargos políticos nas próximas eleições, da implantação mais direta e irrevogável da prisão perpétua, da pena de morte e ainda da privatização das organizações penais.
Foi levantada, e muito resistida, a aceitação de oferecimentos do Pentágono, do FBI e outras organizações estadunidenses, de enviar efetivos a certas regiões (particularmente, à Amazônia), para colaborar na contenção do tráfico, tanto de drogas quanto de armamentos.
Em geral, praticamente não existem análises oficiais ou oposicionistas, governamentais, militares ou civis, que não reconheçam, mais ou menos explicitamente, que esta gravíssima problemática, estreitamente relacionada com muitas outras, nas que a Seguridade Pública se refere, tem causas e exige medidas chamadas “estruturais” e outras “conjunturais” ou secundárias. Obviamente, todas as que acabamos de expor são conjunturais. Entre as estruturais se acostuma assinalar:
· A miséria e a pobreza absoluta e/ou relativa de mais de cinqüenta por cento da população brasileira.
· O crescimento habitacional provocado pela emigração de quase 80% da população das cidades de grande e médio porte.
· O elevado desemprego, causado pela automação industrial desregulada, falta de planejamento para uma política econômica produtiva para o consumo interno e externo. ( multiplicada hoje pela crise mundial).
· A ênfase quase absoluta em uma política econômica anti-inflacionária e de obediência às exigências do FMI, da OMC e do BM, centrada principalmente em rigoroso pagamento da dívida externa. (isto foi escrito antes de que essa divida fosse equacionada).
· A facilitação da entrada de capital especulativo transitório, da remessa não tributada de lucros das empresas transnacionais e o incentivo arbitrário ou o não-incentivo da indústria nacional.
· A facilitação da saída e reingresso de capitais nacionais para o investimento a juros não tributado, através dos chamados “paraísos fiscais”.
· As privatizações de empresas nacionais não-deficitárias, subvencionadas pelo erário público.
· As facilidades para a radicação de empresas estrangeiras do setor financeiro, de montadoras de automóveis e de outros estabelecimentos que se interessam pelo Brasil como mercado consumidor e não produtivo.
· O favorecimento financeiro da automação e o monocultivo latifundiário na industrialização agropecuária.
· O incumprimento, ou o cumprimento qualitativa e quantitativamente insuficiente, das promessas eleitorais do atual governo com respeito a todas as políticas públicas: seguridade, justiça, alimentação, vestuário, saúde, educação, moradia, transportes, comunicação de massas, etc.
· A falta de sérias e profundas reformulações: fiscal, tributária, administrativa, eleitoral, partidária, judicial, legislativa, executiva,... em suma: a eficientização, moralização e racionalização de uma ampla reforma de Estado que inclua a descentralização e a municipalização do aparato.
· A falta de uma reforma agrária ampliada, urgente e eficaz.
· Por mais imediata, urgente e conjunturalmente: a necessidade da generalização e implantação do pressuposto participativo, da bolsa-escola, da bolsa família, da renda mínima assim como do propiciação da formação de entidades tais como os Conselhos Populares e os eventos plebiscitarios para toda e cada um dos problemas que afetam a população, especialmente, para este caso, os conselhos populares de seguridade comunitária.
· Finalmente, entre um conjunto de medidas culturais, se discute a regulamentação de algum tipo de controle da forma e conteúdo das atividades dos diversos meios de comunicação, especialmente os televisivos, assim como outros espetáculos, para depurá-los de cenas de violência armada, particularmente as consideradas incentivadoras da violência e da criminalidade.
Até houveram declarações de educadores propondo a regulamentação da fabricação de jogos infantis, na qual que se proíba a confecção de todo tipo de símiles de armas de fogo.
Como se poderá apreciar, as Razões (do capital, do estado, da sociedade civil organizada e dos setores excluídos marginalizados) são diferentes. Muitas vezes apenas declaratórias, são, em geral, potencial, necessária e dificilmente combináveis: por serem algumas muito divergentes, ou por não existir o menor acordo quanto a sua ordem de prioridade, e, fundamentalmente, por coexistir com outras propostas adversas francamente a serviço, tanto da fabricação, comercialização e do emprego, tanto repressivo como criminal, das armas de fogo.
Entre o pólo utópico de um desarmamento universal, e o pioneiro modelo americano do livre armamento pessoal generalizado, ou a formação de milícias infantis marginais ( com o modelo africano) a civilização brasileira se debate em uma escalada de múltiplas violências, onde as medidas destinadas ao controle da mortalidade por uso de armas de fogo têm fracassado até agora rotundamente.
Ao que parece, a Razão das Armas é consubstancial com a Razão do Sistema vigente e não com a Razão chamada “Humana” da população, a não ser que se tenha que chegar à conclusão de que ambas se definem reciprocamente e que não existe tanta diferença entre elas.
Se assim for, sejam quais sejam os planos e ações que se conceba e se instrumentalize a respeito, dificilmente serão efetivos, sem a criação de algo além de toda razão, sociedade e ser humano conhecidos, como diria o filósofo Nietzsche.

A LIBERDADE DE PENSAR, DE SENTIR, DE AGIR E A PRAXE POLÍTICA

Gregorio Baremblitt

Acostuma-se dizer que a liberdade é um valor histórico que consiste na amplitude e diversidade que o espectro e grau de escolhas disponíveis proporcionam à vontade “Humana” para conceber e executar suas decisões. Assim definida cabe discriminar que a Liberdade pode ser entendida em tanto relativa e/ou absoluta.
Enquanto relativa, a Liberdade está sujeita a todo tipo de determinações, quer dizer, a limitações e constrições naturais, sociais, econômicas, políticas, jurídicas, culturais, subjetivas etc. Neste ponto, a liberdade pode ser compreendida: tanto como consciência da vigência de causas e leis que regem os respectivos campos nos que será exercida, como a apropriação cognoscitiva e pragmática dos recursos existentes para a efetivação das opções escolhidas e das conseqüências desse exercício. Sob essas premissas e que se pode falar de uma liberdade para “mexer” com o Real, com o Possível e ainda para tentar o Impossível. Nesse nível é que se costuma dizer que existe uma liberdade de e uma liberdade para. Ou seja: um conjunto de atos de toda classe destinados a libertar-nos das imposições de quaisquer “natureza”, e outro conjunto de atos de toda classe encaminhados a fazer um uso positivo da liberdade obtida para a transformação daquele aspecto da existência e do existente que desejamos alterar.
Cabe aqui observar que, entre as leis e causas as que acabamos de referirmos, têm algumas que se consideram, seja eterna, ou seja, historicamente inamovíveis (Universais), que apenas podem ser parcial e provisoriamente contra efetuadas, assim como tem outras que se podem levantar ou superar definitivamente. Mas é preciso também constatar que muitas causas e leis que são consideradas inamovíveis em um tempo e lugar, chegam a ser perfeitamente removidas em outros, e que, ocasionalmente, também pode ocorrer o contrário. É indispensável assumir que, o primeiro que se precisa para poder avaliar a liberdade de que dispomos e de eventualmente poder exercitá-la, e de poder pensar, sentir tanto o que já não queremos e o que agora não podemos, como o que queremos e podemos, quanto, por que, quando, como etc.
Mas também é formidavelmente importante poder pensar a liberdade como absoluta. Quase todas as civilizações se têm empenhado em convencer a seus integrantes de que a liberdade absoluta não existe, (que é uma idéia doentia ou malévola), ou não melhor dos casos, de que a liberdade absoluta consiste apenas em que, ainda dentro das possibilidades existentes, a decisão final depende da Vontade de quem escolhe, para seu bem ou para seu mal, e isso configura a famosa imagem do “livre arbítrio”. Alguns exemplos típicos de essa colocação é a que nos da a escolher entre o Estado e o Mercado, entre a Virtude e o Pecado, entre a Lei ou a ilegalidade...
Mas a liberdade absoluta existe, sim. Consiste substancialmente no poder que nos é dado ou, melhor dito, que podemos acreditar que temos, de revolucionar o horizonte do que se nos apresenta como real, possível e impossível. Implica em acreditar que nós podemos pensar o impensado porque está suposto como impensável, sentir o insensível ou jamais sentido, imaginar o inimaginável ou jamais imaginado, e assim poder chegar a desejá-lo e talvez a fazê-lo, de maneira de dar a pensar, sentir, imaginar e querer aos outros, e quem sabe a propiciar que muitos, juntos, o façam.
Essa é a liberdade absoluta, mas não é absoluta porque não tenha limites, nem porque “possa todo” (cada todo mesmo acostuma a ser uma crença universal, eminente e transcendente ), senão porque vai além de todo limite numerável, estabelecido, convalidado, legalizado,consagrado. È a liberdade do uso dissonante de nossas faculdades, sendo que, nesse processo, cada uma delas pode funcionar por separado e acabar ressonando com as outras produzindo efeitos transversais totalmente imprevisíveis e imprescindíveis, de forma que se começa sentindo, ou intuindo, ou imaginando, ou querendo, ou pensando, ou fazendo algo absolutamente insólito, e se acaba pensando, imaginando, querendo, intuindo, sentindo e fazendo algo completamente novo.
E para que esse funcionamento prodigioso aconteça, não é preciso nenhum “senso comum” ou “bom senso” ao qual subordinar o processo para unificá-lo, ordená-lo e submetê-lo ao que se considera real, possível e impossível. Pelo contrário, é esse “bom senso” ou “senso comum”, o horizonte que ele traça, o que impede o processo, ou o exercício da liberdade absoluta. O que se precisa é de certa Fé, da extraordinária Fé de que isso pode devir e acontecer, e de se pode apostar nisso, mas para isso é preciso querer, ter paixão pelo impensável, pelo inimaginável, pelo inimaginável, pelo insensível, e, especialmente, pelo ainda não dito nem feito, que invariavelmente é o indispensável.
A história demonstra que a Imagem do Real, do Possível e do Impossível (sua extensão dimensional e seu tempo cronológico) jamais deixou de mudar e que a modernidade na qual vivemos, não apenas realiza o impossível, senão que até avança além do próprio horizonte desenhado por esses três termos, ou seja: atualiza um virtual inconcebível. Mas o panorama atual demonstra também, paradoxalmente, que vivemos num mundo predominante de “apostadores”, que têm exacerbado ao infinito sua Vontade e sua Fé no apostar, apenas que apostam no que não deveriam. Porque seja no que seja que apostem, em última instância, sabendo ou não sabendo, apostam no dinheiro, que se tem tornado sinônimo de “bom senso” ou de “senso comum”, ou contemporaneamente o “mais comum dos sensos”... que é a causa de boa parte de nossos limites e sofrimentos.
Se o nosso mundo fosse um mundo “dado” a mudar a direção da sua Fé e da capacidade “humana’ de apostar direta ou indiretamente no dinheiro, ou seja, dirigi-la no sentido da Fé e na aposta de inventar, de criar, de ousar, de querer o novo absoluto, só então, ou bem mereceríamos o nome de humanos, ou teríamos já virado uma nova espécie, uma “super-humanidade” , que o filósofo Nietzsche soube profetizar. Mas o filósofo nada mais fez que conceituar as invenções dos que nós chamamos de visionários, de gênios, de revolucionários, ou de loucos, sendo que, amiúdo, eles combinam em si mesmos várias dessas condições conjugadas. E tem sido, felizmente, poucos, os imbecis que afirmam que essas capacidades não estão contidas em todos os humanos, assim como no não humano e o sobre-humano, dependendo das oportunidades e da preparação que se lhes confira para descobri-lo ou efetivá-lo. Apenas uma virtude aproxima a todos esses “super-homens”: o desejo do...por assim dizer, o desconhecido, e a Fé nessa aposta.
Mas: como denominar a tudo aquilo que transcende os limites de Real, do Possível e do Impossível? Como batizar a Fé na Potência e na Aposta, no exercício da liberdade absoluta... e não no poder, no prestígio e, ao final, no dinheiro...ou no que tudo isso tem a ver com o dinheiro?
Como chamar a isso senão política? Porque se pode falar numa política do Real, e do Possível, essa que predomina nos nossos governos, e ainda em muitos partidos políticos, sindicatos, igrejas, quartéis, órgão de imprensa etc. A da corrupção, a incompetência, e ainda a do “senso comum” ou “bom senso”. Pode-se falar até de uma política do impossível, que quer forçar na sociedade aquilo que já foi concebido e tentado sem sucesso.
Mas a política, que não pode ser concebida senão como praxe, quer dizer, a interpenetração de todas as faculdades e da ação, a política dos autênticos movimentos menores, atos – eventos - individuações inventivos, produtivos, os acontecimentos - devires previamente imprevisíveis, impensáveis, insensíveis, inimagináveis, impraticáveis, não é apenas a única política que interessa a Vida de todos (porque a vida de uns poucos não merece ser vivida), senão que é a Vida mesma, em todo e quaisquer processo e território nos que ela se desenvolva. Em que cidade (polis) se exercitará essa “polistica”? Nas cidades invisíveis... como lhe chamou o poeta.

O terceiro Setor.... e assim sucessivamente

Gregorio F. Baremblitt


Uma definição imprecisa

O atualmente chamado terceiro setor é um conjunto mais ou menos difuso, heterogêneo e até heteróclito de legislações, corporações, grupos, organizações, movimentos etc. da sociedade civil.
Seus componentes são variavelmente reconhecíveis, mas tendem a ser identificados com entidades dotadas de pessoas jurídicas denominadas Fundações, Organizações Não Governamentais, Conselhos e outros movimentos Populares, Comissões de Orçamento Participativo e algumas outras aparentemente menos significativas. As agrupações ou entidades do terceiro setor podem depender de corporações empresariais ou sindicais, de correntes religiosas, estarem inspiradas em variadas doutrinas ou “ideologias”, ou serem inteiramente independentes. (se tal autonomia a possível)
Tais entidades não têm fins de lucro e, em geral, trabalham para a diminuição do sofrimento e a mudança de condição que implica, para certos segmentos sociais, problemas principais como a miséria, a pobreza, a doença e a ignorância. Segundo entendemos, outros padecimentos são passíveis de serem incluídos, ou decorrentes dos antes mencionados, e têm recebido nomes não muito bem definidos: exclusão, marginalização, desinserção, estado de risco, fragilização etc. que sugerem, mais que conceituam, essas condições, supondo que exista algum semantema que denote exaustiva e inequivocamente esses referentes.
Consideramos como sub-efeitos das citadas dificuldades, mazelas tais como: trabalho escravo e /ou infantil, emprego informal, desemprego, sub-salário, falta de incentivo ao empreendimento laboral, ausência ou insuficiência de moradia, vestuário, saneamento básico, segurança, administração de justiça, transportes, planejamento familiar, instalações e organização para atividades esportivas, artísticas, de lazer; ocorrência de prostituição (adulta ou infantil), rapto e venda de mulheres, crianças, órgãos para transplantes, tóxico -dependência, alcoolismo, violência doméstica, não cadastramento civil, migrações internas massivas, não reconhecimento de direitos essenciais, múltiplos delitos perpetrados por segmentos marginalizados (organizados ou não, por adultos ou menores etc.,), sua detecção, inquérito, captura, julgamento, condenação, pena, egresso, re-inserção social etc.
As agrupações do terceiro setor, atuando independentemente, ou com diferentes patrocínios e/ou parcerias, se dedicam à prevenção, levantamento de dados e “diagnóstico”, chamada de atenção, denúncia ou reclamação às entidades oficialmente encarregadas do assunto, atenção direta, resolução e reabilitação das mencionadas problemáticas.
As ONGs têm sido legitimadas por legislações nacionais e internacionais e vêm formando redes de grandes dimensões que se especializam em alguns dos problemas citados, ou se aliam e concentram-se circunstancialmente em torno de alguma reivindicação e/ou campanhas específicas ocasionais.
É importante insistir em que o terceiro setor compreende agrupações, formalizadas ou não, e que, em especial, estas últimas podem ter morfologias, logísticas, estratégias e táticas originais cujo enquadramento na terminologia jurídica, política ou sociológica vigente não as qualifica adequadamente.


Uma “velha” história

É bastante aceitável supor que o terceiro setor, suas organizações e práticas, constituam verdadeiramente uma continuidade de outras similares existentes em todas as formações sociais, segundo formas coerentes com a respectiva configuração das mesmas. Valores, princípios, concepções, atitudes e atuações vagamente relacionadas com o que hoje entendemos como solidariedade, colaboração, ajuda etc. têm sido próprios de todas as civilizações. Entre suas manifestações no cristianismo primitivo, as medievais, renascentistas, as da Reforma e da Contra- Reforma, as das revoluções chamadas “burguesas” do século XVII e dos séculos mais próximos da modernidade estão a caridade, a beneficência, a filantropia etc. Todas essas práticas surgem, sem dúvida, nos espaços vagos deixados pelas entidades formalmente incumbidas de ocupar-se dos problemas antes classificados. A rigor, porém, parece-nos que o chamado terceiro setor propriamente dito nasce e se vai consolidando como tal, na medida em que as sociedades atribuem decididamente a seus respectivos Estados, e sob a forma de leis constitucionais, o cuidado da problemática procedente. Em outras palavras, os Estados e suas constituições formalizam de jure direitos de cidadania que implicam benefícios para todos os seus cidadãos por igual, embora tais pessoas não tenham acesso de fato aos mesmos.
Num sentido mais estrito, o terceiro setor surge como tal no ocidente, na medida em que o fracasso da União Soviética, na sua explícita e enfática promessa de priorizar o bem estar do povo, culmina com a derrubada das ditaduras do proletariado.
Por outro lado, este setor começa a adquirir visibilidade e consistência, quando, a partir do Consenso de Washington, que arbitra os supostos programas de desenvolvimento para os países pobres, o citado empreendimento, embora apresente um ou outro sucesso parcial, em geral, representa mesmo é um rotundo aborto.
Essa falência se torna ostensiva no momento contemporâneo, quando os países centrais, como já vinha ocorrendo com os periféricos, experimentam a decadência do Estado assistencialista de bem estar (Welfare State) em complexa correlação com a implantação da globalização, o neoliberalismo e suas sucessivas crises econômicas, mais ou menos localizadas, embora freqüentes e vultosas.
Esses dois grandes fracassos permitem, requerem e propiciam, por parte da entelequia lógica que governa o mundo - a axiomática do capital - e seus principais artefatos que são o Estado, o mercado e suas agências supranacionais como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio (ademais do G 8, G 20 ou o bipolar G 2 EEUU - China,,...o surgimento do terceiro setor e seu crescimento qualitativo e quantitativo.
Esses três termos explícitos: permitem, requerem e propiciam, se acompanham de uma intensa ambivalência, sinergia, contradição, repressão de diversos graus e tipos de violência, assim como preocupação, indiferença, cooptação e concepções variadas. Tal pluralidade resume, de forma simplista, as relações entre o terceiro setor e as forças e agências supremas da riqueza, do poder e do saber que realmente protagonizam a tríade de atitudes positivas explícitas antes enunciada. Por outro lado, o terceiro setor também é permitido, reconhecido e parcialmente legalizado pelos Estados nacionais e muitos segmentos da sociedade civil, não sem diferenças entre os campos públicos e os privados das mesmas.
Esse terceiro setor surge então, tanto como demanda dos segmentos eufemisticamente chamados “desfavorecidos” da sociedade civil, mas também como resposta auto-organizada desses mesmos segmentos, produto da sensibilidade da cidadania espontânea em sintonia com grupos de intelectuais e de militantes políticos e sindicais, de agrupações religiosas e culturais etc. A aceitação do Estado parece provir principalmente da crise de legitimação que o mesmo vem sofrendo no mundo inteiro e, como veremos, da sua decadência generalizada, seja por razões doutrinárias, sustentadas pelo neo-liberalismo, seja por uma série de graves erros cometidos na sua gestão, seja pelo aumento exponencial das demandas populares dos países e segmentos populacionais depauperados nas últimas duas décadas. O apoio das empresas privadas é tão complicado como os anteriormente descritos, e será tratado mais adiante.

Os mundos nos que vivemos e morremos: quem nos ajuda e para que

As diversas entidades e atores sociais: físicos ou jurídicos, explícitos ou anônimos, numa escala que vai desde sua condição supra-nacional, transnacional, multilateral, bloquista, regional, nacional, chegando a todas as modalidades dos âmbitos denominados locais, produzem e difundem conhecimentos e opiniões que dizem respeito à situação de mal estar das populações e atuam em conseqüência dos mesmos. Tais saberes e fazeres podem ou não incluir a defesa, o ataque, a tolerância, a aliança ou ignorância do terceiro setor. O mesmo, por sua vez, apresenta elementos e ações similares, embora com uma enorme diferença de valores, desejos, interesses, potência, poder e eficiência, daquela desenvolvida pela seqüência de entidades e forças citadas anteriormente.
As polêmicas em torno do terceiro setor, por certo muito acirradas, podem ser resumidas e simplificadas da seguinte maneira. Os diversos setores, segundo sua posição na distribuição, luta e pactos de forças na vida social mundial sustentam:

1. Que o terceiro setor começa e se desenvolve em função da incapacidade do Estado e das Políticas Públicas de garantirem e cumprirem com os direitos dos cidadãos constitucionalmente explicitados, e ainda com os direitos humanos prescritos nas Cartas Magnas Internacionais. Isso ocorre devido à insuficiência de recursos, ineficiência dos representantes do povo, sua incompetência, e à corrupção generalizada, de conhecimento de todos. Outros afirmam que tal insuficiência decorre da cumplicidade, circunstancial e/ou estrutural do Estado com as forças supremas do modo, regime ou sistema capitalista mundial em vias de integração que atualmente domina o Planeta.
Esclarecendo: esse complexo consiste em: um modo (de produção de bens materiais e serviços), um regime, (jurídico-político de governo) e um sistema (de produção, distribuição, assunção e atuação de expressão, de conhecimentos, crenças, valores, subjetividades etc). Tal complexo postula e impõe, como veremos, na sua globalização, segundo a tônica do capitalismo com predomínio financeiro, a democracia indireta, representativa “formal”, a minimização dos Estados e sua subordinação às mega-entidades supra, trans e internacionais. Tal complexo tem produzido (a rigor, desde o final da segunda guerra mundial, mas especialmente nas últimas duas décadas), um verdadeiro desastre nos indicadores qualitativos, quantitativos e outras evidências reais de bem estar social.
2. Perante tal insuficiência, sejam quais forem as causas, os diversos segmentos do terceiro setor surgem e se desenvolvem:
a) como concreções de segmentos cúmplices e/ou ingênuos da sociedade civil para tratar de complementar mais ou menos “ortopedicamente” os efeitos deletérios das mencionadas deficiências, seja para justificá-las, paliá-las ou dissimulá-las. Trata-se de contribuir para a necessária governabilidade das massas profundamente insatisfeitas, mantendo a ordem constituída, mas, fundamentalmente, de fingir que existe a possibilidade de um funcionamento harmônico desse tipo de formação social histórica e sua viabilidade como única forma de desenvolvimento “sustentado” e de progresso.
b) como autênticas expressões da “tomada de consciência”, mobilização e empreendimento de organização (mais ou menos intelectual, mais ou menos intensamente experiencial e vivencial), torna-se evidente de que o modo, regime, sistema não contempla, ou mesmo provoca, as catástrofes sociais que as massas sofrem. Torna-se, portanto, indispensável organizar-se e atuar, tanto para exigir a transparência das ações de governo e da lógica do capital, como a intervenção direta do povo na concepção, planejamento, administração, execução, avaliação, correção, continuação ou substituição das ações de Estado. Isso se faz necessário porque a população tem perdido a confiança nos seus representantes formais dos três poderes, na política partidária, no sistema eleitoral “democrático”, nos organismos sindicais, na justiça do direito positivo etc. Mais especialmente, as massas têm começado a duvidar seriamente da dedicação inquestionável do Estado aos interesses populares majoritários; além de concluir que o livre comércio globalizado, confiante na “mão invisível” que supostamente organizaria espontânea e benignamente os efeitos produtivos e distributivos do mercado, opera, predominantemente, ao contrário. Isto por enxergar a inquestionável e evidente subserviência do Estado ao capital ( sem que isso descarte seus vícios e delitos próprios tradicionais). Trata-se assim da luta pela transformação mais ou menos radical do modo, regime, sistema, propondo alternativas que alguns denominam economia solidária, democracia radical, plena liberdade de informação e expressão, produção de novos atores subjetivos sociais etc.
c) dentre as leituras, avaliações e realidades, antes expostas em a) e b) quanto ao terceiro setor, existe um espectro imenso de diferenças de entidades, organizações, estabelecimentos, movimentos, grupos, pessoas, segmentos, valores, princípios, fundamentos, afetos, morfologias, dinâmicas, ações etc. e se poderia afirmar que todos as faixas desse espectro contêm as três modalidades em proporções muito variáveis.
3) Como acabamos de expor, e tínhamos adiantado acima, uma classificação do porte, das morfologias organizacionais, das orientações políticas, das estratégias e táticas, dos valores e utopias das unidades do terceiro setor é seguramente uma tarefa ainda não realizada e de grande envergadura ( a pesar do geométrico segmento do setor). Um dos aspectos mais significativos de tais particularidades são as fontes de subsistência econômica desses segmentos, especialmente das ONGs. Tal aspecto é essencial devido à conhecida relatividade que a origem dos fundos de subsistência impõe a tais organizações, que costuma ser decisiva na sua capacidade de atuação. É interessante distinguir as ONGs do Norte, em geral bem abastadas, e as do Sul, carentes de recursos e quase sempre dependentes das primeiras. Existem ONGs financiadas por entidades trans e multinacionais, como as Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde, o PNUD, a Unicef, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio. Há aquelas mantidas por Fundações ligadas a grandes corporações transnacionais, monopólicas ou oligopólicas como a Kellogs, a Rockefeller, a Microsoft, a IBM, a Exxon etc. No Brasil, por exemplo, as maiores ONGs são patrocinadas pela família Morais, pela Rede Globo de TV, pela Fundação Airton Sena, por bancos privados nacionais ou estrangeiros etc.
No outro extremo dessa escala, existe um grande número de pequenas ONGs que se auto-subvencionam com doações pessoais ou locais, com serviços técnicos prestados, com o trabalho de micro-empresas artesanais, com micro-agropecuária e, finalmente, com o trabalho gratuito de seus fundadores, organizadores e membros.
E óbvio que todo e qualquer serviço prestado, em um grau que seja dessa escala, alivia, apóia e beneficia alguém em estado de penúria, ou na sua preparação para sair dele por seus próprios meios. Campanhas como as do Greenpeace, os Médicos sem Fronteiras, a Cruz Vermelha, assim como enormes parcerias de ONGs que se formam contra algum flagelo em especial, (epidemias, pandemias, catástrofes naturais, incêndios, operações de preservação ou restauração ecológicas), seja de forma emergencial ou permanente, são admiráveis e, até certo ponto, eficazes.
As organizações e movimentos pacifistas, de defesa das singularidades sexuais, etárias, raciais, migratórias, minoritárias em geral, contra a arbitrariedade repressiva, a tortura, a globalização predatória, em suma: toda forma de exploração, dominação e mistificação, são providenciais, seja qual for sua filiação de origem e os efeitos político-cultural- subjetivantes, colaboracionistas, conservadores, pseudo-progressistas e reacionárias que levem, implícitos ou explícitos.
Por outro lado, são acertadas as críticas denunciadoras de que uma grande proporção de ONGs e de campanhas, subvencionadas pelos organismos supra nacionais ou nacionais, são propaladas até o infinito pelas redes de comunicação de massas que são, por sua vez, de propriedade do capital e do Estado, gerando então efeitos que alguns experts gostam de denominar de simbólicos ou ideológicos. (quando não são testa de ferro de delitos governamentais)
Como já antecipamos, os mesmos consistem principalmente em demonstrar que, mediante tais ajudas, é possível que as regiões, países, localidades, pessoas etc, tanto dos bolsões de pobreza e exclusão das nações poderosas e prósperas, como das denominadas subdesenvolvidas, ou em vias de desenvolvimento, cheguem a capacitar-se e a realizar-se, chegando ao nível de qualidade de existência das elites mundiais de topo.
A abissal desproporção entre o poder, a prosperidade e o saber atingidos pelas citadas elites e a enorme maioria das populações mundiais é apresentada como o resultado da superior racionalidade, da dedicação, do empenho e da honestidade administrativa desses segmentos, e não como o produto de séculos de exploração, dominação e mistificação. Essa colossal disparidade é mostrada como perfeitamente consertável, e a prova disso está dada pelas “grandes” (proporcionalmente insignificantes) somas de dinheiro que as agências do capital destinam para propiciar esse progresso e desenvolvimento, que seria “estruturalmente” ou “naturalmente” viável.
As “cruzadas” empreendidas pelo terceiro setor na sua porção colaboracionista com os organismos supra-nacionais, os estatais e o capital globalizado e seu mercado, seriam a inequívoca expressão de que a entidade suprema, a axiomática do capital, “quer” o desenvolvimento universal (definido o mesmo de maneira homogeneizante e predominantemente consumista), “pode” e o “incentiva” por todos os meios a seu alcance; entre eles, esses investimentos aparentemente vultosos na formação e na ação em parceria com o terceiro setor.
O modo, regime, sistema teria entendido astutamente que “a imagem social” humanitária, beneficente, filantrópica, ou como se a chame, do complexo dominante planetário, da mesma forma que o das suas empresas, tem-se tornado (por vários processos históricos, entre os quais se inclui a ação do terceiro setor crítico – reformista – revolucionário) um fator cada vez mas importante para a aceitação das suas medidas políticas.
Entre elas, destacam-se as de desregulamentação do trabalho, a irrestrita libertação dos fluxos de investimento, as regras protecionistas do comércio internacional, as de restrição migratória, e, ultimamente, as bélicas inconsultas, o que resulta em mais demanda e aquisição de seus produtos e serviços, incrementando ainda mais os seus lucros.
Já dissemos que uma das finalidades da aliança desse terceiro setor colaboracionista com o capital supra-nacional e suas agências consiste (exprimindo de maneira muito abstrata e geral) na implantação e consolidação macia e benevolente (ou mesmo forçada, em diversos graus), da democracia indireta formal em todos os países do mundo. Tal aliança é considerada como condição de possibilidade da “ordem” jurídica e política, assim como a total abertura dos mercados, que propiciam as características do modo de produção, distribuição, apropriação, troca e consumo de bens e serviços, inteiramente subservientes ao combate contra a tendência de queda da extração de mais valia, que ameaça estruturalmente o crescimento da massa total do capital.
Tentando esclarecer o já expresso até aqui de forma um tanto mais esquemática:
No capitalismo planetário atual em vias de integração, o desenvolvimento geométrico da tecnologia de automação, o barateamento e facilitação dos transportes e das comunicações, a desregulamentação da legislação trabalhista (tudo isto permitindo prescindir cada vez mais e/ou selecionar melhor o preço da força de trabalho, das matérias primas, os lugares de estabelecimento, os menores impostos etc), o capital industrial ( e muito mais o financeiro) tem otimizado suas condições de atuação mundial. Por outro lado, no entanto, essas mesmas vantagens têm gerado desocupação, diminuição do poder aquisitivo mundial, diminuição relativa do produto bruto, hiper ou hipo - produção segundo os casos, estranhamento, recessão (às vezes com deflação e outras com inflação), resistências locais de todo tipo que vão desde as bélicas até os protestos multitudinários, entre os quais o terceiro setor tem tido papel importante. Nas últimas duas décadas, têm-se multiplicado as crises econômicas, as inadimplências, as falências, as insurreições e subversões, para culminar com o fenômeno contemporâneo do terrorismo, tanto de Estado quanto popular, acerca de cujos alcances ainda não temos uma idéia formada.
Pode-se dizer que a tremenda desigualdade Norte-Sul encobre a existência de um quarto mundo, já muito pior que terceiro, e que esses dois últimos estão disseminados por toda parte. Segundo uma configuração causal sumamente complexa, todo este panorama tem levado a uma dominância do capital financeiro “agiota” ou “usurário”, cuja importância está sobre-dimensionada em quase dez vezes o que sua âncora em bens materiais e riquezas “reais” exige, e cujos fluxos especulativos circulam velozmente pelo mundo com lucros astronômicos, menos vezes com perdas que apenas implicam na falência e na hipoteca do futuro dos devedores e com conseqüências amiúde catastróficas para as economias nacionais obrigadas incondicionalmente ao pagamento do serviço dos juros das dívidas.
Em conseqüência (e com sensíveis diferenças segundo o país e o “valor agregado” do tipo de produtos de que se trate), o investimento industrial e em serviços se torna cada vez menos rentável. Devido a que a relação entre o abatimento do preço das mercadorias (que faz que as agências encarregadas se “desesperem” vigiando o dumping) e a diminuição do poder aquisitivo não acaba sendo favorável ao segundo, o consumo mundial diminui proporcionalmente, a chamada exclusão social aumenta com todas suas mazelas próprias, a democracia indireta formal gera cada vez mas ceticismo, a corrupção e a associação ilícita entre o Estado, o sistema financeiro etc. e o crime organizado se incrementa...e assim por diante.
Entretanto, o sistema bancário (não sem falência e fraudes, e com a ajuda incondicional do Estado) apresenta lucros fabulosos baseados na especulação, na compra de bônus das dívidas etc. Em suma, o macro complexo modo-regime-sistema, embora tradicionalmente saiba viver em crise, e mesmo lucrar com elas, tem entrado numa tendência de convulsões contínuas e onipresentes de conseqüências imprevisíveis.
Assim sendo, os críticos se perguntam, segundo fórmulas um tanto retóricas, mas corretas: que macro complexo é esse que exclui a imensa maioria dos seus supostos integrantes? Quem são, a rigor, os auto-excluídos (por superioridade), embora beneficiários desse estado de coisas? Que esperança estúpida é essa de que o mega complexo pode incluir, sem mudar na sua essência, aos que ele mesmo excluiu e os que demograficamente se lhe acrescentam em quantidades astronômicas? De que terceiro, ou quarto, ou quinto setor... e assim sucessivamente, pode-se esperar a solução para a exclusão, se a mesma é entendida como uma inclusão que seguiria a mesma lógica do mega-complexo que levou à situação vigente? Será que se pode aperfeiçoar o mesmo Estado, racionalizar e adequar a Vida das sociedades ao mesmo mercado e “humanizar” o mesmo capital? É essa a missão do terceiro setor? Como é que, no terceiro milênio, em sociedades que constitucionalmente se obrigam a serem justas, livres e igualitárias, a Sociedade Civil tem que gerar um terceiro setor?
Ora, ou a Sociedade Civil - toda ela - devia ser um terceiro setor; ou o Estado não serve para suas funções e precisa de ajuda externa; ou suas instâncias formais próprias de controle “não prestam” e precisam, por sua vez, de serem controladas desde fora; ou o Estado, o Mercado e Sociedade Civil já não conseguem controlar essa instância maligna que tem-se apropriado delas e que, por sua vez, não consegue controlar-se a si mesma: o capital.


O silêncio do culpável e o silenciado para os inocentes

“-Se quer ser feliz como você diz, não analises rapaz, não analises-”
Heinrich Heine

“Há algo de podre no reino de Dinamarca.”
Hamlet de W. Shakespeare

“O capitalismo leva em si mesmo o germe da sua própria destruição.”
C. Marx

“ Se você gosta de pobres, cuide deles.”
Peter Brucke

O terceiro setor existe e é uma realidade digna que, se só conseguisse realizar uma das boas ações a que se propõe, já estaria justificado.
As suspeitas críticas sobre o terceiro setor, feitas pelos bons críticos que citamos acima, são, sem dúvida alguma, corretas. Mas nenhuma delas é absoluta nem exaustiva. As exortações a vigiar, por exemplo, as “falsas ONGs”, assim como as que são apêndices, burocrática ou financeiramente controladas pelas elites pluto ou tecnocráticas, são edificantes. Não obstante, não devemos perder de vista que, se a pergunta célebre acerca de “quem controla o controlador” remetesse em busca de resposta a alguma instância eminente e única, seja esta terrena ou transcendente, estaríamos em plena regressão a quaisquer dos “corpos cheios”, como dizem G. Deleuze e F. Guattari, que já dessangraram, cada um a seu modo, todas as formações sociais da história (a deusa Terra, o Déspota divino, os Césares, os diversos Supremos Pontífices, as Monarquias Absolutas, os Ditadores do proletariado, os Duces e Führers etc. ).
A maioria honesta dessas críticas conclui por exortar o crescimento e maior inclusão no governo de instâncias e de práticas próprias da democracia direta (consulta, participação, e co gestão populares). No limite, o elogio e a promoção de iniciativas formidáveis (decididamente auto-analíticas e auto-gestionárias) como as da Reforma Agrária e da Economia Solidária, propostas essas tão empolgantes como duras e difíceis, nos parece quase o extremo do que se pode propor na situação atual, não totalmente alheias, nos momentos inevitáveis, a certos tipos de violência resistencial e defensiva.
Em suma: sugere-se ao terceiro setor que faça seu trabalho, advertindo aos “reincorporados” que a responsabilidade da sua exclusão, seja de que tipo for, não é inteiramente sua. Trata-se de assisti-los e de capacitá-los, sem deixar de ajudá-los a entender, sentir e assumir que suas perspectivas de retorno bem sucedido ao seio de uma sociedade individualista e competitiva, baseada no mito da “igualdade de oportunidades para todos”, são precárias porque já o são para a imensa maioria dos que ainda não são considerados excluídos. Trata-se de conscientizar os assistidos para que exercitem com racionalidade seu direito ao voto, que se reúnam para reclamar o descumprimento dos seus direitos constitucionais, que denunciem a corrupção, paguem impostos mesurados e exijam que todos o façam de acordo com a sua riqueza etc.; quer dizer, que se empenhem não só em sobreviver, mas também em aperfeiçoar a democracia direta, a livre iniciativa, a transparência e a inovação, que lhes permitam viver numa sociedade melhor para todos.
Agora, é bom reconhecer e afirmar: sinceramente, não sabemos se o que podemos acrescentar aqui tem ou não algum valor para a gesta do terceiro setor e sua purificação e aperfeiçoamento interno. Os participantes já precisam de todo o otimismo possível para insistir em realizar as desproporcionais tarefas a que se propõem. Não obstante, até como humildes membros do setor em pauta, sentimos a obrigação de acrescentar o que se segue.
Tínhamos falado superficialmente dos chamados “ corpos cheios” das diversas formações de soberania.
Apenas queremos insistir aqui que o “Corpo Cheio” da axiomática do capital é sinistramente diferente de todos os outros mencionados. Na situação atual do capitalismo planetário em vias de integração, essa instância suprema tem achado no capital financeiro sua máquina concreta de efetuação, e a mesma tem mecanismos absolutamente inéditos na história das formações de soberania. Sua lógica (que é simultaneamente uma teleologia que funciona como um Destino) pode reduzir-se a uma fórmula cega: “que o dinheiro (ou seus equivalentes escriturados) produza mais dinheiro, com um número cada vez menor de mediações”. Tal consigna que, à primeira vista, se pode considerar “a la Midas”, não só implica que antes de “matar a galinha dos ovos de ouro”, tudo quanto existe e pode vir a existir se torne galinhas, ou então que tudo devenha ouro sem necessidade de galinhas, ou ainda, que os ovos se desmaterializem e devenham puras marcas de quantidades abstratas. A rigor, a axiomática do capital é imanente a um jogo que conclui com uma morte pitagórica.
Uma das melhores ilustrações que temos achado desse jogo e de seu destino é o filme “Quinteto”, dirigido por Robert Altman e cujo principal ator é Paul Newman. Em um mundo desértico coberto de neve, os poucos sobreviventes jogam um jogo estéril no qual apostam sua própria vida.
Para esse jogo automático da axiomática do capital é preciso, não apenas que “todo homem tenha seu preço”, ou que, como dizia Marx, “todos sejam tratados como coisas”, e ainda que os preços ou valores financeiros ocupem o lugar das coisas e dos homens, quer dizer, das suas instituições, organizações, estabelecimentos, agentes e práticas.
Na direção de alguma das versões em percurso que acompanham empiricamente as postulações aqui enunciadas, vejam-se os estudos dos ecólogos políticos. Eles mostram claramente que, tomando em consideração a composição populacional, as tendências da automação, do desemprego, da diminuição do poder aquisitivo, o desgaste irreversível das fontes naturais energéticas, nutricionais e de matérias primas, a poluição ambiental de diversas características, o domínio crescente das corporações financeiras sobre os organismos supra-nacionais, os Estados nacionais, sobre os meios massivos de comunicação e de ação repressiva e militar, a axiomática do capital estará, no ano 2020, no apogeu de seu poder, assim como na cúspide das dificuldades que deverá “resolver”, à sua maneira, a fim de continuar o processo de conversão e concentração do parque natural, social, subjetivo e técnico-industrial em capital abstrato.
Nessas circunstâncias, a tessitura neo-darwinista e neo - malthusiana que já caracteriza a condução mundial da globalização neo-liberal, terá que chegar à sua apoteose! - Como?!- Provocando difusos, heterogêneos, dispersos, disseminados e auto-perpetuados processos de genocídio passivo e ativo. Dito claramente: os que não podem trabalhar dentro do aparelho de produzir mercadorias rapidamente comercializáveis e conversíveis em dinheiro para pagar juros de empréstimos cada vez mais elevados, os que não podem consumir os produtos velozmente perecíveis para que sejam descartados e recomprados, os que não podem pagar o cuidado da sua saúde, alimentação, educação exigente e inaplicável, e os que de diversas maneiras perturbem a ordem necessária para o “normal” andamento desse processo, simplesmente... morrerão. Morrerão passivamente de fome, de sede, de epidemias, de catástrofes naturais; ou ativamente por repressão, ou por guerras convencionais ou terroristas nas quais se empregarão todas as armas (hoje “proibidas”) que não comprometam os centros de depósito, acumulação e administração do capital.
A esse respeito são interessantes as declarações de altos funcionários de organismos de relações, direito, defesa militar e pesquisa internacionais, mas também de autoridades das grandes entidades econômico-financeiras como o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional (sem mencionar as de órgãos oficiais de alto nível dos próprios EUA, e muito menos surpreendentemente de social - democracias da Comunidade Européia e dos países nórdicos). Essas organizações não estão preocupadas apenas com os resultados do aumento da miséria e da concentração das riquezas, nem somente com a multiplicação das crises e falências nacionais e a recessão generalizada da última década. Também estão incomodados pelas enormes concentrações populares que acompanharam, no mundo inteiro, as reuniões de cúpula dos citados organismos nos últimos dez anos, pela persistência das guerras de guerrilhas de libertação nacional, as separatistas e, sobretudo, pela situação do Meio Oriente e a generalização do terrorismo.
As mencionadas declarações chamam a atenção sobre a necessidade de atender a todos os flagelos que mencionamos neste texto e, amiúde, mencionam a importância das ativas alianças com o terceiro setor, desde logo com aquele que lhes é dependente, obediente ou pelo menos não abertamente hostil. Mostram-se sensíveis à situação atual, mas continuam predicando que o desenvolvimento sustentado é possível e que sua condição é o cumprimento das cartilhas que periodicamente emitem.
Essas autoridades, pluto e técnico-burocráticas, ou sabem ou não sabem do sombrio prognóstico que rascunhamos nestas linhas, mas, obviamente, jamais falam nele. Inclusive as posições dos EEUU nas duas últimas grandes reuniões de cúpula, com agenda ecológica, têm-se declarado abertamente contra toda medida de preservação do meio ambiente, como se vivessem num outro planeta que não este que todos habitamos.
Acreditamos que esse é o presente e o futuro que se espera para Planeta Terra e sua população nas próximas décadas, panorama no qual o terceiro setor (segundo sua orientação ético - política) tem um papel importante a cumprir. Mas nem o terceiro, nem o quarto e, assim por diante, setor, verão sua contribuição efetivar-se se não tiverem clareza sobre as peculiaridades da axiomática do capital.
Tudo o que acaba de se ler aqui está encaminhado fundamentalmente a uma recomendação a respeito que se pode resumir em poucas palavras.
A difícil missão do terceiro setor, que merece o maior respeito, admiração e a colaboração dos povos, sem a menor exceção, mas dentro de cada uma das iniciativas do seu formidável empreendimento de ajuda, assistência, instrução, cuidado etc. dos “excluídos”, deve promover um saber sobre o componente essencialmente letal do mega complexo que os inclui e sua axiomática, e conter uma preparação para a luta. Não se trata apenas de uma instrumentação para a re-inserção dentro de uma sociedade que os rejeitou e à qual não devem incorporar-se sem uma crítica “construtiva”. Já é bom que, junto com tudo o que tenham recebido e aprendido, estejam compenetrados de que essa sociedade é injusta, opressiva e desigual e que “outro mundo é possível e pode ser inventado”... mas não é suficiente.
Mais ainda, nós acreditamos que infinitos mundos virtuais são atualizáveis, e que, pelo menos em nível de desejo, é dos excluídos que se pode esperar muito mais que dos incluídos, indiferentes ou cúmplices.
Não obstante, é essencial que, não apenas os excluídos, mas também todos aqueles que não somos escolhidos como prediletos pela axiomática do capital estaríamos mais bem denominados com o nome que o psiquiatra argelino Fanon deu a seus compatriotas: “Os condenados da terra”.
No famoso comunicado Nº 17 do nazismo, a ponto de ser vencido, o Führer declarou: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”. Na guerra civil espanhola tornou-se famosa a frase de um general franquista: “Viva a morte!”
A axiomática do capital é a mais fantástica combinação histórica de potência produtiva voltada contra si mesma como destruição de tudo quanto a sustenta. As relações históricas causais, ou pelo menos as conexões entre a lógica atual do capital e os ataques terroristas suicidas, é um tema apaixonante para ser estudado. É a guerra gigantescamente desigual entre duas forças auto- eliminatórias. Jamais poderemos esperar que os porta-vozes do capitalismo planetário se pronunciem a respeito.
A axiomática não fala e não sente culpa; é uma máquina abstrata. Seus acólitos falam por ela, e não dizem o que nem eles querem ouvir. E nós, que pouco ou nada ouvimos do rumor das engrenagens da máquina, não somos igualmente vítimas, nem igualmente inocentes. Preparemos-nos e preparemos todos os que possamos, porque não será apenas com trabalho e com estudo que lutaremos contra o perigo de que, de tantos mundos possíveis, não seja possível para nós, ou para nossos filhos, mundo nenhum.