quinta-feira, 1 de maio de 2008

4 - CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS PARA UM PROJETO DE FUNDAÇÃO E PROCESSAMENTO DE REDES POPULARES POLITICAMENTE PROTAGONISTAS.

Desde a instauração das nações modernas ocidentais, mais acentuadamente a partir de século XIX, o paradigma democrático geral compõe-se de uma Formação de Soberania com um Estado e uma Sociedade Civil que, por sua vez, se subdivide em um grande segmento privado e um público. As diferenças de significação desses conceitos e das realidades que denotam são muito numerosas e não é o caso de tentar desenvolvê-las aqui. Para a finalidade, porém, que inspira de modo prevalente estas linhas, enfatizaremos apenas uma distinção importante para o que queremos ressaltar.

Para o Estado denominado democrático, de múltiplas funções, a tarefa principal e indubitável é zelar de todas as maneiras possíveis pelo bem-estar geral de seu povo, levando em consideração ao extremo máximo concebível suas necessidades, desejos, interesses e demandas, assim como o emprego prioritário e total de suas potencialidades para esse fim.

Pois bem. Quando dividimos a Sociedade Civil em dois segmentos, um público e outro, privado, faz-se importante, no contexto destas páginas, diferenciar também duas vertentes do chamado setor público. Por um lado, há o constituído pela circunscrição pública correlativa ao Estado, ou seja, a área pública que compreende o Povo no sentido de contingente, agrupado por uma soberania nacional: o Povo como maioria estatística ou eleitoral. 

Por outro lado, é preciso definir o Povo como depositário urgente, imperativo, impostergável de carências essenciais não satisfeitas, assim como de potencialidades reais não aproveitadas, relativamente independentes do Povo “estatal”. Essa última definição inclui os segmentos sociais de toda natureza que compartilham, como preocupação e vontade, a mesma escala de valores, prioridades e realizações, ainda que, de fato, não comportem plenamente as mesmas necessidades, desejos, interesses e demandas. Entendido desta maneira, o velho conceito de Povo adquire para nós uma significação e importância cujo ator incomparavelmente prevalente é a população, tal como a definimos em último lugar. 
Os diversos segmentos dos outros espaços e entidades componentes das formações sociais merecem a denominação e a dignidade suprema de Povo, apenas na medida em que contribuem, lutam, em primeiro e intenso lugar, pelo alcance das próprias reivindicações e com as forças, procedimentos e prioridades desse Povo, entendido como entidade principal e protagonista, com o Estado e a Sociedade Civil ou independentemente deles. 

Em outras palavras:
a) Todo Estado é Estado de uma Sociedade Civil, pública ou privada, e, por sua vez, toda Sociedade Civil, pública ou privada o é por referência a um Estado. 
b) Tanto, porém, no seio do Estado, como no da Sociedade Civil, pública ou privada, existe um “Povo” que, apesar de ser origem e suporte das citadas entidades e de sua totalização como Formação Social tem (ou deveria ter) uma dinâmica própria, que inventa incessantemente a si mesmo e conclui por mudar a Formação à qual está ligado.

A adoção incondicional desses princípios expositivos que acabamos de manifestar é que dá a entidades tais como o Estado, o Governo que o ocupa transitoriamente, seus setores e atividades chamadas “públicas”, assim como à Sociedade Civil denominada “privada”, o direito à existência e o de seu registro como Entidades de Direito, respeito e ainda estima por parte do genuíno Povo. Explicitando melhor, o Estado e a Sociedade Civil, enquanto vinculados entre si, são partes do Povo, e não, o inverso. 

Comparando essas afirmações com o panorama vigente no mundo contemporâneo globalizado (tanto o entendido como democrático, como o considerado não democrático), constatamos que o mesmo marcha no sentido da plena implantação planetária do Megacomplexo Neoliberal, integrado pelo Modo de Produção Capitalista de bens materiais e serviços, o Regime Político da Democracia Representativa Indireta e o Estado, denominado administrador, assim como do Sistema de Representações e Afeições chamado de Realismo Cínico. 

O quadro social se completa com a denominada Sociedade Civil que está, por sua vez, dividida no setor privado e público, sendo que a circunscrição do privado tem um mínimo e formal compromisso com a existência do que definimos como "popular" (a não ser como fonte de força de trabalho, consumidores e usuários). Entretanto, o público estatal tem infinitamente muito mais a ver com o estatal governamental corporativo (interessado em votos, impostos e compromissos com os setores dominantes da sociedade civil) que com o que nós preferimos qualificar de autenticamente “popular” e, especialmente, com seu protagonismo.
Outras caracterizações das Formações contemporâneas de soberania, "posmodernizadas" (menos em sua estrutura que em sua nomenclatura) falam de um primeiro setor, o Estatal, um segundo setor, o da Sociedade Civil privada com fins de lucro, e um terceiro setor, que reúne em si o conjunto de indivíduos e grupos civis com finalidades filantrópicas, beneficentes, caritativas ou variavelmente alternativas ao Megacomplexo dominante. Essa representação tripartite parece bastante sugestiva. 
O terceiro setor, mesmo que sua definição não seja unívoca, parece reunir uma quantidade de associações civis cuja finalidade de agrupamento é muito variada, mas nas quais predominam diversas finalidades de “ajuda” mútua ou assimétrica aos contingentes cujas carências não estão suficientemente (ou nada) cobertas pelas agências formalmente destinadas a esses fins. O que insistimos em qualificar de “Povo Protagonista” parece ser visto como objeto (de subtração ou de doação), jamais como fonte última de toda a riqueza, potência, justiça e benefícios. Esta terminologia costuma ser própria das entidades, conhecimentos e práticas da configuração, funcionamento e terminologia do que denominamos Capitalismo Mundial Avançado.

O Modo de Produção Capitalista Avançado pode ser definido (muito sinteticamente) por alguns traços como: 
a) Um Funcionamento Econômico pelo qual, em forma aceleradamente crescente, todos os processos, estruturas e práticas, assim como seus resultados e efeitos são gerados na condição de mercadorias e seu intercâmbio tem por finalidade cada vez mais exclusiva o lucro (financeiro), a ganância (industrial ou comercial) e a renda (arrendátaria urbana, rural, de equipamentos, etc.). 

b) O Regime Político da Democracia Indireta Representativa {quer dizer, Estatal (Executiva, Deliberativa e Judicial}, Partidária, Eleitoral, Republicana e Federal, regido pela Constituição Nacional e todas as Leis do Direito, (analisado em seu funcionamento positivo último, sobretudo, de fato) tem como pilares a preservação da Ordem constituída e, em especial, o cuidado com a propriedade privada e estatal, assim como, prioritariamente, a integridade das instituições e organizações que lhes são próprias. 
c) O Sistema de Produção de Subjetividades, valores, crenças, afeições, etc. está composto principalmente pela educação, a comunicação de massas, a religião, entre outras, mas transversaliza todas as instituições, organizações, estabelecimentos, equipamentos, agentes e práticas do Megacomplexo subjetivo, natural, social e maquínico, orientando-o no sentido dos valores da reprodução simples e ampliada do citado Megacomplexo.

O mais expressivo, porém, do Capitalismo Planetário em vias de integração é a subordinação desigual das Formações Nacionais de Soberania a entidades transnacionais como o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial, além do Clube de Paris, o de Londres, o dos Sete Grandes (G7), com o agregado da Rússia, etc. Este pool de organizações está, por sua vez, a serviço de uma Entidade Suprema, supranacional, que é a denominada Axiomática do Capital, uma de cujas formas mais correntes é o Equivalente Geral Dinheiro. 

Embora o mundo quase todo esteja submetido a essa Instituição supranacional, existe, entre as nações que lhes são subordinadas, uma divisão hierárquica nacional de funções. Por exemplo: os EEUU encarnam o poder bélico de preservação da ordem que é próprio a este conceito mundial; outros países são os depositários de boa parte do seu tesouro monetário e assim pelo estilo.
Essa ordem caracteriza uma escala de hierarquias econômicas, políticas e culturais altamente diferenciadas entre os diversos países que a integram e dentro de cada um deles. Entretanto, as grandes Empresas transnacionais, nacionais, estatais e privadas que a constituem tendem cada vez mais ao monopólio e à imposição de todo tipo de condições de produção, comercialização, etc. que lhes gerem menos custos e maiores benefícios.

O leitor deverá ter notado em nossas definições uma inclinação inconfundível. Por exemplo: consideramos que a finalidade da produção de bens de uso que só secundariamente se tornam de troca está-se invertendo total e definitivamente no Modo Capitalista Avançado. A ocupação e as funções do Estado, do tipo do cuidado dos direitos de Cidadania e Humanos, assim como a atenção prioritária, por meio das Políticas Públicas, às necessidades, desejos, interesses e demandas do setor popular da Sociedade Civil, estão francamente secundarizadas, interminavelmente postergadas ou até abolidas de fato, ainda que se as proclamem de direito. 

A produção de subjetividades, de valores, representações, afetos e funções psíquicas em geral está fortemente destinada a cumprir com as operações indispensáveis para a reprodução simples e ampliada da citada Megamáquina, à geração de suas subjetividades, indivíduos, famílias, grupos, organizações, movimentos e multitudes afins ao universo vigente e à eliminação parcial ou total ativa ou passiva dos que não lhes são funcionais. 

Esta tessitura inclui a exploração predatória da natureza e a orientação mais ou menos impositiva do parque tecnológico industrial. Tal orientação, cujos conhecimentos e realizações permanecem por muito tempo rendendo as vantagens das patentes, royalties, etc. está marcada por características (macro e micro) formadas e destinadas ao consumo suntuoso, rapidamente perecível, fútil e descartável (destinado a uma comercialização acelerada), ou a objetivos bélicos e de doutrinamento apropriado à citada reprodução. 

Como é sabido, a parafernália de dominação que garante a ordem do regime político trans, inter e intranacional dessa configuração mundial visa a instauração, nos circuitos regionais e nacionais dependentes (seja em supostas vias de desenvolvimento ou francamente subdesenvolvidos) da mencionada Democracia Indireta, representativa, republicana e federal hegemonizada pelos governos submetidos à lógica da axiomática do Capital supranacional. Tais governos ocupam Estados minimizados, centrados em uma gestão direcionada ao pagamento das dívidas externas com os organizamos transnacionais antes descritos ou com os capitais privados estrangeiros, Estados estes garantidores de um mercado de trabalho desregulado, subpago (ou até escravo), de um avanço leonino às riquezas naturais da geopolítica das Formações em questão e ao que “resta” de mercado com poder aquisitivo nas nacionais subordinadas.

A dominação planetária tende a estar assegurada por esse regime político (se possível, bipartidário comutável), pela produção doutrinária de valores e estilos de vida (e de morte), cada vez mais afins com a Ética da axiomática do Capital, assim como pela permanência no lugar imposto pelo difuso poder mundial para cada Formação Nacional, classe social, movimento, grupo, etc.

O emprego da força armada, policial ou militar (intranacional o internacional) adquiriu uma tessitura preventiva. A mesma culmina com a modalidade atual de ataque, por parte das nações hegemônicas, a todo e qualquer movimento do qual se pode supor uma possível agressão, antes que a mesma se perpetre e sem a aprovação dos organismos multilaterais mundiais.

De qualquer forma, o emprego de recursos bélicos com a finalidade da dominação planetária não é preferencial (por ser caro e impopular) e está reservado exclusivamente aos casos em que as modalidades de resistência nacional ou regional (especialmente o terrorismo ou a guerrilha) fazem caducarem os recursos da democracia nominal e formal.
Resumindo ao máximo, digamos: essa Ordem Mundial Neoliberal, nascida politicamente das gestões de Ronald Reagan e Margareth Tatcher e, economicamente (entre outros), da conceituação doutrinária do Massachussets Institute, Milton Friedman e os “Chicago Boys” (e sua plêiade de seguidores modernos e pós-modernos) é que resultou neste Capitalismo Planetário em vias de integração, política e culturalmente neoliberal, ortodoxo. O mesmo, todavia, está muito longe de sua implantação homogênea no mundo inteiro por três razões fundamentais: 

1) Sua contradição básica: a diminuição da produção global de riqueza e sua acumulação desmesurada, (apesar de todas as estratégias de incremento mercadológicas antes citadas) caminham paralelamente à diminuição do poder aquisitivo de grandes segmentos do parque consumidor usuário (desocupação, inadimplência, falências, crises, etc.). Os gastos de geração artificial de demanda (marketing) e de controle cultural e bélico da ordem imperante, assim como a norma de diminuição tributária dos países centrais, comprometem os pressupostos, não só dos países dependentes, como também dos opulentos. 

2) As políticas públicas chegam a um grau de redução, insuficiência e privatização que comprometem seriamente, não só os aspectos mercadológicos, como até os demográficos dos segmentos desassistidos. A delinqüência e a criminalidade, indiscutivelmente ligadas à miséria e à pobreza, nem por isso deixam de contaminar todos os estratos, lugares e funções sociais.

Em um panorama como este, as iniciativas compensatórias do Terceiro Setor são, em geral, insuficientes, confusas, incompetentes, superpostas e, não poucas vezes, corruptas, adquirindo um caráter ortopédico que não consegue modernizar-se para sair da beneficência, caridade, filantropia e do paternalismo tradicionais. Pelo contrário, continua gerando a crença, não apenas na naturalidade das desigualdades e injustiças, como também na bondade dos exploradores, dominadores e mistificadores.

3) O que denominamos “Povo” começa a multiplicar ao infinito suas modalidades macro e micro de resistência à tônica imperante. Tal resistência vai desde a luta armada, até à tentativa de construir uma comunidade paralela inspirada e gestada por valores auto-analíticos, autogestionários, democráticos diretos, solidários, sem fins de lucro acumulativo senão de subsistência e propagação do “espírito” do movimento instituinte.

O atual crescimento do fenômeno do terrorismo e a crescente generalização da tecnologia de construção de armas atômicas tornam o equilíbrio de forças não menos desigual, mas cada vez mais perigoso e ameaçador para as populações civis. A finalidade neodarwinista neomalthusiana da organização e gestão dessa civilização já é notória e abertamente denunciada. As elites opulentas, as do poder, prestígio, conhecimento, etc. começam a participar ativamente das iniciativas mistas do Terceiro Setor, (estatais, empresariais, religiosas, não governamentais), aportando-lhes fundos não tributáveis, empréstimos de baixas quantias, consultorias americanóides inadequadas de gestão, administração, etc. de origem e tipo mercantis, concedendo-lhes territórios de atuação irrelevantes e exigindo delas resultados de autosustentabilidade, em geral, irrealizáveis.

Quando essas iniciativas têm um êxito tão limitado quanto é de se esperar, o mesmo serve para afirmar, por exemplo, a “responsabilidade social da empresa” ou “a disposição à cooperação do Estado com a Sociedade Civil”. Se tais empreendimentos fracassam a curto, médio ou longo prazo, a “culpa” é atribuída à idiossincrasia dos agentes ou dos usuários consumidores. Em suma, do que se trata é de salvaguardar a decadência do modo de produção e de regime neoliberal democrático nominal, formal, indireto e pervertido. Tal decadência se torna evidente pela sucessão espetacular de crises nacionais, o baixo produto interno dos grandes blocos geopolíticos, e o incremento das dívidas estatais e privadas internas e externas.
Logo, a persistência de diversas modalidades de Estado de Bem-Estar, em países da Comunidade Européia, alguns orientais, os nórdicos são um caso especial ou de duvidoso futuro, resultante da combinação entre riquezas naturais de grande porte e populações pequenas de alto grau de instrução, civilidade etc.

Um fenômeno sumamente curioso é o crescimento geométrico das economias da China e da Índia, baseado, principalmente, na enorme força de trabalho com mínima remuneração e um regime jurídico político de diversas maneiras autoritário. Seja qual for o sentido que esse crescimento represente no momento atual e no futuro mundial, a injustiça e desigualdade econômica, social, política e cultural reinantes nessas potências não são de bom diagnóstico nem prognóstico.

Resumo de algumas possíveis conclusões

Sintetizando ao máximo, diremos, a guisa de conclusões que se podem depreender da análise acima esboçada, que:

1) Os inumeráveis tipos de empreendimentos denominados de Terceiro Setor, por mais heterogêneos, contraditórios, suspeitos e mesmo que seus patrocinadores, gestores e resultados venham a ser francamente desonestos, não podem ser descartados taxativamente devido ao estado de calamidade público majoritário e contínuo vivido pela humanidade.

2) Existe, porém, um requisito essencial para que tais iniciativas tenham efeitos positivos (sejam os específicos circunscritos procurados, sejam os da formação ético política transformadora de seus agentes usuários). Trata-se de que tudo quanto for pensado, dito e produzido nessas iniciativas, tenha como componente substancial o conhecimento práxico, quer dizer cognoscitivo e pragmático, das verdadeiras causas e razões que geram uma realidade econômica, política e cultural (natural e técnica), tão terrivelmente exploradora, dominadora e mistificadora. Trata-se de que a auto-análise e a autogestão que integram cada passo desses empreendimentos sejam protagonizadas privilegiadamente pelos setores populares autônomos que devem ser seus planejadores, gestores, executores, avaliadores e beneficiários. 

3) As várias formas de ajuda e colaboração com diversas entidades e forças que pertencem organicamente ao Estado e ao Mercado, ao Modo Capitalista avançado, ao Regime Político Neoliberal pseudodemocrático indireto e a cultura civilizatória chamada “pós-industrial, pós-moderna, etc. sejam aproveitadas. Não obstante, as mesmas devem ser empregadas pelo Povo, explícita ou clandestinamente, para a construção de uma civilização profundamente crítica, assim como para a criação de uma Rede incessantemente crescente de experiências solidárias singulares, inspiradas integralmente em uma concepção variavelmente auto-analítica, autogestionária, libertária e solidária do Mundo e da Vida.

4) Tal Rede e suas campanhas deverão ter clareza absoluta de que essa vasta e interminável transformação histórica não tem espaços vedados nem limites proibidos, e que, inevitavelmente, quase todos os seus aliados de hoje, são também seus contendores contemporâneos e talvez seus francos inimigos de amanhã. Se tal realidade é assumida, é fundamental que o “Povo Protagonista”, adquira conhecimento e assuma o fato de que, em cada momento dos processos de colaboração do Terceiro Setor, virá a vigorar uma violência de diferentes signos e graus que não pode ser evitada, mas, sim, detectada e instrumentada a favor da Utopia Ativa do Povo protagonista. 


Sem esses requisitos, o Terceiro Setor, assim como o Primeiro e o Segundo, serão entidades e processos não só homogeneamente reacionários e antiprodutivos, mas, sim, predominantemente degradantes e genocidas. 

Em suma: o Povo Protagonista do qual falamos é relativamente independente com respeito ao Estado e á Sociedade Civil, com e sem fins de lucro. Pode e deve articular sua existência com os demais setores citados, mas, em realidade, é produto da incapacidade dos mesmos para cuidar de sua existência digna e, em conseqüência, é um campo experimental destinado a substituí-los.
O “Povo protagonista” já existe em milhares de diversas realidades subjetivas e objetivas, mas sua porção infinita é a de um “Povo que está por vir”.

Gregorio F Baremblitt.

terça-feira, 15 de abril de 2008

1 - PERVERSÃO E PÓS-MODERNIDADE

Por Gregorio Franklin Baremblitt*



1. A brevíssima exposição seguinte implica numa abordagem cuja radicalidade excede o espaço disponível, e a possibilidade de definir os termos empregados, os quais, provavelmente não são de uso habitual dos leitores.
2. Definir pós-modernidade é um desafio insuperável. Por um lado, porque os autores divergem demasiado a respeito, por outro, porque se trata de um processo em desenvolvimento, mutante, ambíguo e enganoso. Podemos escolher dois caminhos para essa tentativa: um negativo e um positivo. O negativo gira em torno de que a chamada crise dos grandes metarrelatos, e, eu diria, das expectativas românticas modernas do século passado tem gerado uma dispersão de cosmovisões e um ressurgimento de neoarcaísmos que compromete seriamente a Ordem do Mundo e da Vida (para empregar termos clássicos da filosofia). O positivo consiste em que a decadência das estratificações, códigos e sobrecódigos, territórios e segmentariedades globais, em suma, os valores modernos e seus equipamentos de implantação e vigilância, propiciam tanto a transgressão como a invenção do novo absoluto. O dito vale para todos os campos da atividade chamada “humana”, embora alguns autores atribuam ao pós-modernismo uma predominância estética. 
3. Por sua vez, é de notar que aqui não definiremos perversão pelo seu pertencimento ao campo epistemológico nem clínico das psicopatologias nem da psicanálise. Essas abordagens relacionam inevitavelmente a perversão á subjetividade e ao vínculo supostamente constitutivo entre o desejo e a Lei simbólica (seja como for que seja entendida). Segundo esses pontos de vista a perversão se define por uma ambivalência das vivências e depois da estrutura do perverso entre a convicção de ser o objeto fálico do desejo materno e a pobreza da intervenção paterna, o terceiro que só entra na cadeia significante do sistema materno (único que poderia legitimá-lo) como uma seqüência ordenada, segundo o registro imaginário. Tal composição condenaria o perverso á divalência de uma posição segundo a qual, reconhece a lei paterna como degradada à ameaça ou à derrisão, e conserva a situação de falo do desejo de um outro que, a rigor, não aceita a castração e falta ao tempo que reconhece ao interditor como simulacro de objeto de diversificação do desejo, colocando-se como objeto do desejo de todos (puta) ou como portador de um desejo idealizado de autocompletamento, (a virgem inaccessível). Em todos os casos, o perverso é condenado a humilhar, a devassar ou a violentar a impoluta, assim como a transgredir compulsivamente uma lei nominal sem legiferação procedente. A “perversão polimorfa” infantil, se há tornado una exclusividade repetitiva, não apenas com uma falência do acesso a uma versão consagrada do gozo, senão com a perda da multiplicidade da experimentação libidinal infinita. 
4) Segundo a esquizoanálise de Deleuze e Guattari, o poliverso infinito não totalizável nem hierarquizado das pulsões chamadas “parciais”, não se define como polimorfo por relação á parafernália eticoconceitual de um modo exclusivo, exaustivo e excludente, de constituição do sujeito edipiano e de seu desejo faltoso segundo uma lei que o obriga a “versar” segundo a lógica de uma síntese disjuntiva excludente.
O poliverso libidinal, que não e parcial porque não é parte de nenhum todo é um recorte dentro da multiplicidade rizomática infinita da realteridade virtual imanente a todos os instituídos organizados e registrados, incluída a ordem e o registro simbólicos. Sua potência consiste em gerar, entre as inumeráveis individuações por heceidade, os acontecimentos e devires novos absolutos, inumeráveis produções de subjetivação singulares, que se entretecem nos dispositivos, agenciamentos e máquinas abstratas que compõem a citada imanência entre realidade e realteridade. Essas montagens, heterogêneas, transversais e maquínicos podem, ou não, compor sujeitos, como peças transitórias e funcionais (como é o sujeito marginal a uma produção desejante, testemunha perplexa do esplendor do acontecimento, ou como diria Espinoza, da “Glória de Deus”. O desejo em esquizoanálise é uma realidade pré-ontológica que só sabe produzir); (por isso produção desejante). As infinitas subjetivações que “oferta” nunca se efetuarão como edipianas porque a constituição edipiana do sujeito é a culminação da implantação do Capitalismo Planetário em vias de integração. Trata-se da única opção de produção de subjetividade que a axiomática do Capital (a entidade lógica suprema que preside ao Capitalismo Planetário Integrado) permite à sua Megamáquina de produção de mercadorias - e entre elas, de sujeitos.
A constituição edipiana do sujeito, não é sincrônica nem diacrônica, é simplesmente histórica. Começa nas formações despóticas imperiais asiáticas de soberania, e, depois de una longa trajetória, a Megamáquina do Capital conclui por deslocar seu limite externo (onde ele realmente não pode expandir mais a extração de mais valia e se confronta com o nada assintótico do seu “desejo”), ao “interior” estrutural do sujeito edipiano que reduz a um teatro familiarista as impotências, dependências, proibições e legitimações da sua frustração, privação e castração essenciais. O déspota já legalizado e parlamentarizado, suporte subjetivo do “homem íntimo”. Do capitalismo individualista, competitivo, consumista, narcisista, exibicionista, vouyerista, fútil, sadomasoquista, fascista, genocida, suicida, terrorista de Estado e de não Estado, etc.

5) A rigor as denominações tais como pós modernidade, globalização, neoliberalismo, pós industrial, sociedades de conhecimentos, etc, são apenas sinônimos de uma fase cínica do capitalismo que, até agora, só soube numa década gerar um mundo em que os pobres são mais - e mais pobres, os ricos são menos, e mais ricos, o terceiro mundo se debate na agonia do pagamento de dívidas e os blocos opulentos passam por sérias recessões, grandes dívidas externas, falências bursáteis e bancárias, ameaças de uma terceira guerra mundial terrorista, mentiras bélicoestratégicas, transgressões de todo tipo das fracas entidades depositárias de leis puramente nominais. Á enorme maioria dos Estados, das famílias, das escolas, dos trabalhos, dos espetáculos, dos meios de comunicação de massas, das religiões e muitas disciplinas científicas e acadêmicas, se não estão francamente a serviço dessas tendências, se limitam a protestar mornamente em nome de seus fundamentos e deontologias. 
SE ISTO E VERDADE, MUITOS DE NÓS SOMOS PERVERSOS E PÓS MODERNOS. Mas não somos perversos no sentido da produção de uma subjetividade que sabe e ignora, que aceita e transgride a lei do simbólico. Somos perversos enquanto sabemos para onde estamos indo e não paramos de gozar sem vergonha dos estertores do destino que nos espera. Somos perversos porque cultivamos estereotipadamente e, supostamente, aperfeiçoamos tecnicamente um modo de produção de subjetividade exclusivo, ignorando todos os outros que nos rodeiam com seus exemplos.

6)Felizmente, a produção de subjetivações multiplicitárias gera incessante e velozmente as de que precisa para os movimentos, organizações, manifestações, estabelecimentos industriais, agrários, científicos, populares, artísticos, militantes, redes de economia solidária, ONGs de gestão arriscada e decidida, membros heróicos e mártires da imprensa, médicos sem fronteiras, etc. O chamado terceiro setor, desigual e disperso na sua composição e ação, é a esperança de um mundo governado pela perversão econômico financeira, pelo poder bélico e pelo cinismo cultural, que já nem sequer pretende enganar a ninguém.

A “involução” perversa do capitalismo planetário integrado chegou a um ponto do qual, sinceramente, não sabemos se tem retorno. Mas não é esse mundo que contribui para piorar a patologia dos perversos, independentemente constituídos pelos processos e estruturas do desejo faltoso, da castração fracassada, da lei insuficientemente simbolizada pelo seu registro a nível significante. É esse mundo como rede perversa que os produz e os coloca onde deles precisa.



* Gregório Franklin Baremblitt é Livre Docente Autorizado da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Buenos Aires e Coordenador Geral do Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte. Tem sido Encarregado da Área de Docência e Investigação do Grupo psicanalítico Plataforma Argentina.